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A casa como laboratório


         O ato de morar consiste em ocupar um espaço. Esse lugar deve ser preenchido com as necessidades e subjetividades da vida, de maneira a definir o que em Arquitetura chamamos de "programa de necessidades".
         Ninguém é igual, cada pessoa possuí objetivos e prioridades próprias, gerados a partir das experiências arquitetônicas vividas, seja no pequeno jardim com folhinhas de hortelã na frente da casa da avó, a sala escura e aconchegante da tia, ou o, aparentemente, longo corredor que liga a cozinha ao quintal de sua casa. Esses espaços moldam nossos interesses e constroem as futuras conversas entre arquiteto e cliente, na busca pelo projeto da morada.
         Algumas vezes, cliente e arquiteto embarcam numa jornada experimental, onde, através do exercício projetual, questionam regras e idéias pré-definidas. O resultado são casas-laboratório, onde o edifício é definido e construído para depois, após a conclusão da obra, começar o exercício de ocupar esse novo Espaço e transforma-lo em um Lugar.

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Casa do arquiteto (1927)
[Konstantin Melnikov]


         Talvez um dos edifícios mais simbólicos de um período bonito da história, essa casa, na cidade de Moscou, foi projetada para ser a moradia do próprio arquiteto. Konstantin Melnikov foi um de diversos arquitetos soviéticos do início do século XX a abraçar e desenvolver o movimento que ficou conhecido como Construtivismo Russo. Trata-se de um termo generalista para designar diversas correntes revolucionárias de pensamento impulsionadas, em muitos aspectos, pela revolução de Lênin.
         Foi um período extremamente rico da humanidade, onde a igualdade cultural atingia toda a população. Tal como o socialismo propriamente dito, o movimento artístico-arquitetônico foi proibido e banido dos livros de história por Stalin, sendo ainda hoje redescoberto por diversos historiadores. O tema poderá se desenvolver no futuro, numa postagem aqui no comoVER.



         A Casa de Melnikov resistiu aos duros anos de ditadura e vem nos mostrar as experiências construtivas e programáticas naquela década de 1920.
         Trata-se de uma casa com três pavimentos, onde duas circunferências definem a planta. A construção do edifício se dá por meio de uma espessa alvenaria estrutural de tijolos e lajes de madeira.

Foto da construção da casa. Detalhe da alvenaria de tijolos e aberturas das janelas hexagonais.

Mesmo em foto mais atual, é possível enxergar o contraste da arquitetura com o entorno.

         As circunferências definem o espaço interno, formando externamente dois volumes cilíndricos de alturas diferentes, que formam uma espécie de terraço antes da cobertura. As aberturas são o grande destaque do projeto.


         Na entrada, o cilindro é cortado por um plano de vidro definido por caixilhos de ferro, dando total transparência à casa. É importante destacar o fato de as aberturas serem duplas, ou seja, são sempre dois planos de vidro, um interno e outro externo, de maneira a formar um bolsão de ar que ajuda no isolamento do rigoroso frio do inverno russo.


         O outro volume possuí diversas aberturas hexagonais, que ora são fixas, ora se abrem, dependendo do ambiente interno. As janelas criam interessantes desenhos dentro da casa.




         No pavimento térreo estão Sala de estar/jantar, cozinha e lavanderia, no segundo pavimento estão os aposentos e no terceiro nível está o ateliê do arquiteto, com vista privilegiada e acesso a uma sacada.
         Melnikov faleceu em 1974, anos antes de ser reconhecido o gênio que era. A casa hoje pertence a seus filhos, e ameaça desabar devido à falta de manutenção e abalos no solo (causados por construções próximas).
         A casa do arquiteto em Moscou perdura como exemplo extraordinário das experiências estéticas e construtivas naquele período da história.

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Casa Leme (1970)
[Paulo Mendes da Rocha]


         Uma casa sem janelas. O que pensar?
         Das muitas janelas da Casa de Melnikov na fria Rússia da década de 1920, a essa casa monolítica na São Paulo dos anos 1970, muita coisa aconteceu. Se as moradias modernistas foram se tornando cada vez mais "transparentes", essa residência projetada por Paulo Mendes da Rocha originalmente para Fernando Millan, é a contramão radical.
         Uma vez que a iluminação natural interna é conquistada basicamente por meio de clarabóias, em um terreno escavado, com muros de arrimo e paredes-viga, a leitura externa do edifício pouco revela de seu interior.


         O concreto armado é eleito aqui o principal protagonista, e é através dele que o espaço interno é moldado pesado, sobrando ao teto de cristal iluminar o interior.



         Ao observarmos a planta do pavimento térreo, fica clara a distribuição do programa no terreno. Na planta original, a cozinha e sala de estar/jantar acabam por definir esse pavimento. Aqui, as linhas tracejadas da projeção das lajes é importante, pois marcam onde a iluminação acontece. Na cozinha por exemplo, é possível observar que uma faixa zenital acontece de fora a fora, com apenas a sombra de duas vigas de sustentação do pavimento superior.




         Nos desenhos acima, é possível observar a distribuição do programa no pavimento superior e inferior. Enquanto os dormitórios e escritório definem o interior, uma escada externa helicoidal liga os três pavimentos, saindo do escritório e chegando até a lavanderia.
         Outra escada externa, voltada para a rua, sai da área da piscina e chega até o terraço. A piscina aliás, merece destaque, pois foge completamente ao padrão. Localizada num aterro, ela está elevada em relação ao nível da calçada numa altura de cerca de três metros, voltada para a rua. A cobertura da casa, além de possuir os panos de vidro horizontais que delimitam a iluminação interna, se constituí por uma laje nervurada inundada (esse mesmo sistema seria utilizada anos mais tarde em muitos projetos contemporâneos, como na Casa em Aldeia da Serra do MMBB).


Planta de cobertura e Corte




         A Casa Leme, por suas experiências com iluminação e introspecção, se revela como importante laboratório de idéias e vivências. Na casa, não é possível saber o que acontece na rua, mas é sempre possível saber o que acontece no céu.

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Casa Dino Zammataro (1970)
[Rodrigo Lefèvre]


         No mesmo ano que a Casa Leme é construída, Rodrigo Lefèvre projeta uma das casas mais representativas de sua busca na experimentação construtiva. A residência para Dino Zammataro em São Paulo, é uma das mais simbólicas contruções que exemplificam a "poética da economia", que Lefèvre vai desenvolver em conjunto com Flávio Império e Sérgio Ferro.



         As experiências com abóbodas do Grupo Arquitetura Nova (formado pelos três arquitetos já citados), foram se desenvolvendo ao longo de diversos projetos. Lefèvre tinha uma especial preocupação pelo desenvolvimento, não apenas de uma arquitetura que fosse reflexo das necessidades e características de nossa economia, mas que também ajudassem na situação precária de ofício dos trabalhadores na construção.

Desenho mostrando o esquema da abóbada em outro projeto de Lefèvre, a Casa Peri Campos.


         A Casa Dino Zammataro possuí um arco diferente do utilizado até então. Mais alto, possibilita a existência de uma mezanino/pavimento superior maior, que não prejudica a espacialidade do pavimento térreo. Como pode-se observar nas plantas e cortes, todo o sistema hidráulico é periférico ao edifício e aparente, não sendo necessário que a caixa d'água tenha que ser estruturada sobre o arco por exemplo. Essa delimitação do programa em blocos, além de simplificar o projeto, facilita a construção.




         A abóbada, além de ser facilmente construída (no extremo poderia ser executada por uma única pessoa), é o primeiro elemento a aparecer na obra, facilitando todos os demais serviços, já que protege não apenas materiais, mas também os próprios operários da chuva e forte sol.


         O resultado não é a ilusão do trabalho isolado do arquiteto que constrói um sonho do cliente., mas o trabalho conjunto de projeto e canteiro de obras, onde o papel do operário é muito mais do que somente o de construir aquilo que está representado numa folha.


         A idéia de não "re-vestir" (ocultar, mascarar) tem a intenção justamente de não esconder aquilo que é resultado da subjetividade do operário, ou seja, de não alienar o futuro morador. Dessa maneira, a atenção e maior foco é dado nos detalhes construtivos, sendo esses os próprios acabamentos.
         Como aconteceu com o próprio Melnikov cinquenta anos antes, o Golpe Militar acabou por silenciar muito a atividade do Grupo Arquitetura Nova. Rodrigo Lefèvre e Flávio Império vieram a falecer prematuramente no início dos anos 1980, enquanto Sérgio Ferro se exilou definitivamente na França, onde até hoje está.
         Ferro recusa-se a exercer sua profissão de arquiteto nas condições de trabalho da mão de obra contemporânea, que se não mudou muito em relação aos anos 1970, piorou em vários aspectos.

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Maison a Bordeaux (1998)
[Rem Koolhaas/OMA]


         Uma arquitetura resultante de uma tragédia. Através da experimentação originou-se uma arquitetura capaz de se adequar à pior das vicissitudes da vida.
         Devido a um acidente, o cliente perdeu os movimentos das pernas, ficando impossibilitado de se locomover sem a ajuda de uma cadeira de rodas.
         Essa casa na cidade francesa de Bordeaux, talvez seja uma homenagem de Koolhaas à idéia da "máquina de morar". A impossibilidade do cliente tornou-se possibilidade para a arquitetura.


         Existem escadas. Mas a principal circulação vertical da residência é o elevador, que chega a todos os pavimentos e torna possível ao morador acessar cada canto de sua casa.
         Existe um filme documentário chamado "Koolhaas Houselife" dedicado a mostrar a residência sob o olhar de uma simpática governanta, mostrando todos os prós e contras ao se projetar uma casa experimental.

A governanta do filme "Koolhaas Houselife".


         A implantação da residência aproveita o terreno acidentado para criar um térreo que acontece parcialmente enterrado, onde os cômodos de serviços estão. Do outro lado do terreno, está a única parte do projeto fragmentado do corpo da casa, onde está a moradia de empregados. Um espaço enclausurado entre dois muros separa as duas casas.


As áreas de serviço são enterradas no terreno (à esquerda). À direita, a moradia dos empregados.


         No segundo pavimento está a área social da casa, com cozinha, sala de estar/jantar e varanda. No terceiro pavimento estão os dormitórios. Porém, o grande experimento da casa é o elevador, e o grande feito dessa máquina é o de justamente ser muito mais do que aparenta: o elevador é também um cômodo da Maison, o escritório. O trabalho do cliente o acompanha por onde quer que ele vá, movimentado-se sempre num eixo vertical fixo, ao lado de uma grande estante de livros.




         Os três pavimentos contrastam diferentes materialidades externamente. Enquanto o térreo acontece como uma série de cavernas, o segundo pavimento é transparente, com grandes panos de vidro e cortinas. A transparência e leveza é possível graças ao sistema construtivo de poucos pontos de apoio e uma grande viga metálica invertida atirantada a um contra peso enterrado.




         O terceiro pavimento, dos dormitórios, é monolítico e metálico, com diversas aberturas redondas cobrindo a superfície do volume, similar ao que Melnikov pensou para sua própria casa décadas antes.


         Como mostrado no filme "Koolhaas Houselife", o cliente veio a falecer poucos anos depois da conclusão do projeto em 1998, desfrutando pouco da casa que viria a defini-lo. Sua família ainda vive na Maison.

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         Uma casa pode seguir modas e representar aquilo que for imaginado. Porém, por sua subjetividade programática, pode também ser um incessante laboratório de idéias.
         As idéias, mesmo que mal sucedidas, tem sua importância em criar repertório, inspirar e mostrar que a imaginação não tem limites.
         Seja para simbolizar uma revolução.
         Seja para fisicalizar extremos.
         Seja para tentar mudar o panorama sócio-econômico.
         Seja para fazer nascer esperança da mais horrível tragédia.
         Seja para questionar o modo como vivemos e interagimos com a Cidade, essa, que ao contrário dos edifícios, é mais longeva, e atravessa os séculos com nossas ações.

Casa NA [Sou Fujimoto]


Fontes, mais imagens e informações:

> Casa do Arquiteto de Konstantin Melnikov
http://www.archdaily.com/151567/ad-classics-melnikov-house-konstantin-melnikov/
http://archinect.com/features/article/62725/delirious-moscow
http://bambialmendinger.blogspot.com/2010_12_01_archive.html
http://www.sens.co.uk/blog/2011/1/19/house-melnikov.html
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/06.014/1680
http://www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/133/imprime22742.asp
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d0/Melnikov_house_rear.jpg
http://www.muar.ru/press_dossier/2006/archi_repress/pd_archi_repress_en.htm

> Casa Leme de Paulo Mendes da Rocha
http://www.slideshare.net/meni77/paulo-mendes-da-rocha-casa-leme-9842440
http://casaeimoveis.uol.com.br/album/cobertura_jardim_album.jhtm
http://ffffound.com/image/12df0398882f7ba200a22a3e21ce5529a764ea7b

> Casa Dino Zammataro de Rodrigo Lefèvre
http://projetofractal.wordpress.com/2009/03/06/rodrigo-lefevre-projeto-de-um-acampamento-de-obra-uma-utopia/aspectos-da-producao-e-armazenagem-de-elementos-pre-fabricados/
http://30.media.tumblr.com/tumblr_lhqh8nbMYf1qcp8t5o1_500.jpg
http://www.flickr.com/photos/ridequi/4038119479/
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/01.001/3352?page=3
http://www.flickr.com/photos/ridequi/3793328026/
http://www.arquiteturabrutalista.com.br/fichas-tecnicas/DW%201970-125/fichatecnica1970-125.htm

> Maison a Bordeaux de Rem Koolhaas e OMA
http://dosquatro.wordpress.com/tag/maison-a-bordeaux/
http://chaddao.blogspot.com/2011/03/blog-post.html

> Casa NA de Sou Fujimoto
http://www.archdaily.com/180463/video-house-na-sou-fujimoto-architects/

         Algumas imagens foram salvas utilizando o comando printscreen. Caso o autor de qualquer uma dessas imagens sinta-se ofendido ou prejudicado por sua exposição, mande-nos um e-mail e ela será retirada da postagem. comover.arq@gmail.com


ATUALIZAÇÃO [09/07/2013]

O blog The Charnel-House colocou hoje no ar um interessante post sobre a casa de Melnikov (que faz inclusive com que nossa postagem sobre esse icônico projeto pareça mal escrito). Vale bastante a pena ler. Para isso, clique aqui.

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