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Fazer cantar os pontos de apoio


O que Auguste Perret e Vilanova Artigas quiseram dizer com essa frase?
"É preciso fazer cantar os pontos de apoio".

         Por décadas do século XX, diversos foram os arquitetos a ensaiar sobre o tema. Liberar o solo, desafiar a gravidade, delinear o contato da construção com o que ali já existe: no que consiste esse ato?
         Não por coincidência, Auguste Perret recebeu em seu ateliê um jovem aprendiz, que viria a ser uma das maiores influências arquitetônicas do século. O Corbusier da década de 1910, ainda não era o inflamado modernista, indignado ao não receber a menor atenção anos depois ao desembarcar em Nova York (só se contentou quando um de seus assistentes pediu a um fotógrafo para tirar uma foto sua). Alí, no ateliê de Perret, aprendeu lições importantes que resultaram no desenvolvimento de seu esquema Domino, a plasticidade e possibilidades da estrutura.
         Sem a independência entre alvenaria e estrutura, jamais seriam possíveis as dimensões e espaços que tantos projetos criaram. Até mesmo Brasília, o que seria sem o piloti? Liberar a passagem, desfazer barreiras entre  a "caverna" e a "floresta". Através da engenharia, da poesia, e da criatividade, liberar o solo tornou-se possível.

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Casa Cunha Lima (1958)
-Joaquim Guedes-


         Essa casa projetada por Joaquim Guedes no final dos anos 1950, no bairro do Pacaembú, São Paulo, foi possivelmente o primeiro projeto no Brasil a liberar o solo e buscar apenas quatro pontos de apoio. A economia de acabamentos, primando pelo concreto armado aparente, experimentação com os caixilhos (que viria a se desenvolver na ausência completa destes como interlocutores entre concreto e vidro) e os poucos pontos de apoio, tornariam-se clichês na vanguarda  da São Paulo daqueles anos. Não foram poucos os projetos a explorar os preceitos da Casa Cunha Lima, aplicados pelo professor Joaquim Guedes com maestria.


         Os quatro pilares "galhados" possibilitam que a casa pouse no terreno acidentado, sustentando-a como mãos francesas. A fachada voltada para rua, nos estreitos 10 metros de largura do lote, não exibe o térreo livre, aberto para a área de lazer. O programa distribui-se por três andares, sendo que o acesso se dá pelo pavimento intermediário, com uma recepção e escritório. No pavimento superior estão quatro quartos e dois banheiros. No pavimento inferior está a cozinha e sala de estar, com um grande pano de vidro voltado ao fundo da área (foto acima).

         Guedes distribui a casa no terreno de maneira que ela se define inteiramente no ar: do momento que você sai da calçada, só volta a encontrar terra firme ao chegar no fundo do terreno, descendo dois andares.








         Os pontos de apoio da Casa Cunha Lima são como troncos de árvores que crescem do interior do terreno e encontram a casa que paira sobre o ar. Em constante experimentação, essa obra de Joaquim Guedes, fruto de diálogos arquitetônicos com colegas da época*, marca o início de uma série de projetos interessantes e até hoje de pouca divulgação.



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Casa Fanego (2004)
-Sergio Fanego + Gabinete de Arquitectura-


         Ao projetar seu próprio lar, o arquiteto Sergio Fanego, Solano Benitez e seu Gabinete de Arquitectura, fizeram mais do que apenas liberar o solo. A casa em Assunção, Paraguai, flutua com sua cerâmica armada acima de um terreno plano e banal, criando uma nova topografia que não é feita de cheios nem de vazios, mas de um grande e invisível abraço acolhedor.


         Solano Benitez é um arquiteto de rico repertório. A maneira como ele e sua equipe utilizam o tijolo, elemento construtivo abundante em seu contexto paraguaio, é das mais inovadoras. Na Casa Fanego, a cerâmica está presente nos mais improváveis elementos, causando surpresas pela alusão que fazemos com o material. Dessa maneira, um muro maciço de tijolos pode dar lugar a um portão, e um bloco prismático espesso às mais singulares aberturas.



         "Na ponta dos pés", parte da casa sobrevoa o lote plano, tirando partido deste. A casa começa onde a maioria das residências termina: nos fundos. Com essa postura, possibilitada por uma legislação que permite construir encostando nos muros de divisa, um espaço ganha novo significado.


         Ao andar por debaixo do volume, somos lembrados do verdadeiro e primordial  papel da Arquitetura, que é o de possibilitar abrigo contra as intempéries. Por debaixo da grande massa, avistamos ao fundo a entrada da casa. Mesmo pousada no chão, Solano e Fanego desconstroem sua fachada, novamente por meio de uma inversão: o translúcido é fixo, e o opaco é móvel. Assim como no portão de entrada, os painéis de cerâmica   se movem para revelar aberturas, passagens. Os planos geométricos acabam por emoldurar dois jardins, um na frente, outro aos fundos, formando uma espécie de pavilhão de cristal.




         O clima quente constante de Assunção, que chega aos 45ºC no inverno (e nós que pensávamos que Ribeirão Preto era quente), faz com que a postura projetual seja sempre a de buscar a sombra. O entorno foi considerado, de maneira que a disposição da residência, com um pátio coberto seguido por um descoberto e gramado, segue a disposição solar.

Croqui mostrando a lateral do terreno e consequente disposição.

Não apenas o conforto térmico foi considerado, mas também a privacidade.


Esquema de projeção de sombra do edifício alto vizinho.

Esquema definitivo de cheios e vazios adotado.




         O programa é distribuído de forma simples, com cozinha, lavanderia, sala de jantar e estar no térreo, e o pavimento superior reservado aos dormitórios.





         A pesada superfície de outrora mostra-se leve e móvel, possibilitando ventilação e iluminação controlada.
         A leveza estrutural é possível por um engenhoso, e ao mesmo tempo simples, sistema de lajes cerâmicas atirantadas. Como num antigo castelo de passagens secretas e paredes falsas, as aberturas e adoção do tijolo como material principal desviam a atenção da estrutura num primeiro momento, para num segundo momento o tijolo mostrar-se como a própria estrutura.



         Solano e Fanego simplificam os pontos de apoio do projeto para apenas quatro micro pontos, onde as vigas se encontram com os pilares escondidos dentro do muro de divisa do lote.
         A casa flutua. A gravidade é vencida. O abrigo se sustenta.



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         Em São Paulo, Joaquim Guedes eleva a Casa Cunha Lima do solo para construí-la no ar, lugar onde antes apenas os pássaros podiam estar no terreno acidentado no Pacaembú.
         Em Assunção, Solano Benitez e sua equipe ajudam Sergio Fanego a construir sua casa em um terreno plano. Ao eleva-la e liberar seu térreo, pousam-na "nas pontas dos pés", como que sustentadas pelo puro desejo dos arquitetos, o mesmo desejo de Lucio Costa em Brasília, de Bucci na Casa em Ribeirão Preto, de Paulo Mendes na Casa Masetti, e de tantos outros desejos expressos na bela frase do mestre de Corbusier.


"É preciso fazer cantar os pontos de apoio".

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         Imagens da Casa Cunha Lima e mais informações sobre a formidável e quase esquecida obra de Joaquim Guedes:
         > http://arqpb.blogspot.com/2008/07/joaquim-guedes.html
         > http://grampodesign.blogspot.com/2008/08/projetos-joaquim-guedes.html
         > http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/13400
         > http://www.vivercidades.org.br/publique_222/web/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1395&sid=18&tpl=printerview

         Imagens e mais informações sobre a Casa Fanego:
         > http://www.pushpullbar.com/forums/showthread.php?5252-Paraguay-Solano-Benitez
         > http://www.grupoarquitectura.com.ar/X%20invitados/invitados_002.htm
         > http://arqytec.blogspot.com/2011/08/solano-benitez.html

         A maioria das imagens e plantas da Casa Cunha Lima foram retiradas do arquivo .pdf da dissertação de mestrado de Pablo Luhers Graça, intitulada "As Casas de Joaquim Guedes: 1957 - 1978". Algumas plantas tiveram seus textos modificados para melhor leitura, dada a qualidade ruim de cópia das imagens do .pdf.

         * A influência que o projeto da Casa Cunha Lima teve na arquitetura de São Paulo nos anos que se seguiram, pode ser facilmente percebida. À época que o projeto era desenvolvido, Joaquim Guedes dividia seu escritório junto com Carlos Millan. Anos mais tarde, a influência de Guedes seria percebida na arquitetura de Millan, vide o projeto da Residência Antonio D'Elboux (1962), claramente influenciada pelo desenho da Casa Cunha Lima.

         Postagens relacionadas a essa:
         - Túmulo - Solano Benitez
         - Casa em Ubatuba [SPBR]
         - Paulo e os Coches

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