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Paredes para cobrir e coberturas para voar: divagações sobre o brutalismo como postura projetual


         A respeito de Carlos Millan, disse Sérgio Ferro: "(...) Ele fez uma casa aqui no Morumbi, tinha quatro pilares e um volume em cima, quatro pequenas colunas bem estranhas, eu esqueci o nome [Residência Nadyr de Oliveira]. Eram quatro [no total, oito] pilares e um caixote em cima. Quando concretaram os pilares e tiraram a forma, tinham só três colunas. Uma não tinha passado, o concreto não tinha descido. Eu me lembro, todo mundo passou horas, dias discutindo aquilo em dois sentidos: por um lado, a estrutura estava exagerada, como é que nós estamos exagerando se com três pilares ficou, pra que o quarto? A economia era um negócio importante, economia no sentido de racionalidade. E ao mesmo tempo era o canteiro. Falhou por que não passou o concreto, então a atenção que a gente tinha que ter nas medidas, por que eram quatro pilares muito estreitos, com ferro dentro, talvez por isso não tenha passado. Mas, mesmo uma casa desse tipo, gerava discussões enormes." (1)

Residência Nadyr de Oliveira (São Paulo, 1961) - Carlos Millan

         A polêmica envolvendo a apropriação do concreto armado, e toda sua possível plástica, pelos arquitetos brasileiros (principalmente paulistas) traz em suas raízes problemáticas contemporâneas. O que leva as atuais gerações a ainda utilizarem tal elemento de forma poderosa em seus projetos?
         Em um extremo, temos o concreto armado utilizado de forma aparente, ora apenas demarcando a estrutura, ora servindo como fechamento, e ainda existem momentos em que é difícil discernir fechamento de estrutura. Estética que não se esgotou, mesmo após cinco décadas, tal atitude brutalista de projeto, maneira de fazer modernista tão difundida em nossa vanguarda arquitetônica, tem ainda relevância?


Residência Albertina Pederneiras (São Paulo, 1964) - Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro
Detalhe externo e elevação.

         Nas décadas de 1950 e 1960, o país via suas cidades crescerem vertiginosamente. A vida mudava e a maneira de morar seguia junto. Ao se formarem, os arquitetos tinham a importante missão de construir o país, e o desejo cada vez maior de experimentar, de fazer o que viam na escola. Brasília ia se fazendo moderna, a passos largos e aparentemente certos. Mas a que preço? Quão comuns não devem ter sido situações como as descritas por Sérgio Ferro em seu relato sobre Millan nesse período.


Residência Albertina Pederneiras (São Paulo, 1964) - Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro
Plantas do pavimento superior e térreo, vista da fachada e sua relação com a rua.

         Mesmo com as dificuldades técnicas, as estruturas de concreto armado se tornavam cada vez mais arrojadas, e os acabamentos cada vez mais simples. A racionalização dos materiais, bem como as soluções de execução das obras (elétrica e hidráulica aparentes e dispostas de maneira centralizada) deixavam espaço para experimentações com modulações e detalhes construtivos (como a independência da estrutura da cobertura em relação à laje do pavimento superior, na Residência Albertina Pederneiras, foto acima). Externamente, as residências se tornavam opacas, robustas, brutais, sem revestimento (e mesmo quando esse era utilizado, era de maneira "rala", caiada). Os materiais expostos tornavam a arquitetura didática: o exterior possibilitava a leitura do projeto e das soluções adotadas. Era porém no interior que as residências guardavam as maiores experimentações: novos jeitos de morar e de se relacionar.



Residência Helladio Capisano (São Paulo, 1960) - Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro
Vista do pátio interno, corte, plantas do pavimento superior e térreo, e detalhe da abertura zenital fechada por brises móveis.

         O papel que as coberturas começam a ter a partir desse momento, vai definir diversas posturas e soluções projetuais. Luz e ventilação, por meio de rasgos (como as aberturas zenitais do projeto acima, cuja abertura pode ser regulada a bel prazer) são exploradas em plantas de dimensões maiores, afim de trazer conforto a áreas que poderiam se tornar escuras devido à adoção de empenas cegas e aberturas estratégicas.
         Ora em lajes planas, ora em lajes inclinadas, impermeabilizadas ou cobertas por telhas, as soluções de cobertura vão conduzindo a diversos experimentos, como à da abóbada catalã.



Residência Simão Fausto (Ubatuba, 1961) - Flávio Império
Vista interna com detalhe da cobertura de abóbadas e fechamentos, elevação, corte, planta a detalhe externo focando a grande gárgula que colhe a água das chuvas da laje jardim.

         Diversos foram os arquitetos brasileiros a adotar abóbadas em seus projetos naquele início da década de 1960. Na Residência Simão Fausto em Ubatuba, Flávio Império resgata técnicas locais e utiliza as abóbadas de maneira elegante. A influência vem possivelmente do breve contato que teve com a técnica ao trabalhar no escritório de Joaquim Guedes, um dos primeiros arquitetos paulistas a utilizar as abóbadas (é possível que o primeiro projeto paulista a adotar tal solução de cobertura tenha sido a da Casa Muller Carioba, projeto de 1960 de Carlos Millan que, como bem se sabe, manteve escritório na ápoca com Guedes).




Residência Dalton Toledo (Piracicaba, 1963) - Joaquim Guedes
Vista externa, plantas do pavimento térreo e superior, vista interna, com detalhes para a cobertura de abóbadas aparentes.

         Tanto o uso das abóbadas, como a experimentação com o concreto aparente vem de raízes que se confundem. Como bem frisa Fernando Freitas Fuão, em seu texto "Brutalismo: a última trincheira do movimento moderno" (para ler, clique aqui), tal estética surge na obra de Le Corbusier e de diversos arquitetos ingleses no período do pós-guerra, principalmente nos anos de 1950. O gênese das abóbadas na arquitetura brasileira, vem de um único projeto: as Maisons Jaoul de Corbusier.

Maisons Jaoul (Paris, 1956) - Le Corbusier
Foto recente de uma das duas casas, retirada do incrível Flickr de seier+seier. Para ver mais fotografias das casas, e de outras obras, clique aqui.

         Historicamente, o arquiteto franco-suíço tem sido apontado o grande patriarca de nossa arquitetura brasileira (2), logo não é de se espantar a influência que tais projetos da obra tardia de Corbusier tenha lançado desdobramentos tão poderosos em nossas gerações modernistas.



Residência em Itaipava (1959) - Affonso Eduardo Reidy
Vista externa e plantas do pavimento térreo e superior.

         A técnica trazia tal frescor aos cada vez mais criticados "caixotes" modernos, que é possível encontrar residências com abóbadas catalãs até mesmo em cidades como Ribeirão Preto.



Residência M. Marcondes (Ribeirão Preto, 1966) - Francisco Segnini e Joaquim Barretto
Vista da entrada da casa sem portões, corte e elevação.

         A profusão e disseminação da postura projetual brutalista, vinda do desejo de fazer "aquilo que viram na escola" (3), leva os jovens arquitetos da época, em um primeiro momento, a seguirem diretrizes alinhadas aos projetos de seus professores, depois desenvolvendo linguagens próprias, que contribuíram para a grande diversidade e riqueza de soluções que nossa arquitetura vai ganhar naqueles anos.


Residência J. Sadala (Araraquara, 1971) - Francisco Segnini e Joaquim Barretto
Foto externa e elevação, com detalhe para a escada helicoidal de concreto.

         Analisando-se até mesmo obras de arquitetos pouco conhecidos (caso de Segnini e Barretto, que deixaram vasta obra e legado no interior de São Paulo), pode-se perceber preocupações que levam à adoção de conceitos que norteiam diversos projetos da época.


Residência Anderson Gattaz (Ribeirão Preto, 1970) - Francisco Segnini e Joaquim Barretto
Vista externa e corte.

         Em projetos como da Residência J. Sadala e Anderson Gattaz, ao mesmo tempo que se percebem algumas idéias tomadas como lições estrangeiras (o esquema bipartido de fenestrações, tão utilizado por Alvar Aalto, por exemplo), o concreto aparente, poucos pontos de apoio e as aberturas zenitais já citadas, somadas às empenas cegas paralelas eram soluções que foram largamente utilizadas: influenciadas principalmente pela obra de Vilanova Artigas.



Segunda Residência Taques Bittencourt (São Paulo, 1959) - Vilanova Artigas
Vista externa frontal, corte e detalhe da empena lateral de concreto aparente.

         As empenas cegas de concreto da Residência Taques Bittencourt, com seus apoios triangulares invertidos (um ensaio dos pilares do edifício da FAUUSP, de acordo com Marlene Milan Acayaba), uma variação das empenas cegas adotadas na Casa Olga Baeta, até hoje são "copiadas" e adotadas em vários projetos, de diferentes maneiras.

Residência em City Boaçava (São Paulo, 2005) - MMBB

         Depois de mais de um ano que revisamos esse projeto dos paulistanos do MMBB aqui no blog, não podemos deixar de atentar para um fato até então desconhecido a nós: o cliente dessa casa é uma arquiteta (como é possível verificar na edição de Fevereiro desse ano da Revista Bamboo). Não são poucas as vezes que tal arquitetura, da qual essa casa em City Boaçava faz parte, é criticada pelo público leigo como "uma arquitetura que só arquitetos gostam". Será que não ocorre uma banalização do concreto nos dias de hoje?


         Será que o Ultraecletismo também não absorveu o brutalismo como mais um estilo? Será mesmo necessário "tecer" grandes panos de argamassa armada, cuja violência da demolição (evidenciada no vídeo acima de Pedro Kok, da demolição da Galeria Leme) é um reflexo do exagero construtivo?

Convento de La Tourette (Lyon, 1960) - Le Corbusier

         Tal exagero e "maquiagem" de concreto aparente já havia sido denunciada pelo mesmo Sérgio Ferro, em seu interessante texto "Desenho e canteiro na concepção do convento de La Tourette" (1988), proveniente de um estudo que realizou com os estudantes da faculdade de Grenoble (4).
         Todas as questões levantadas nessa divagação levam à pergunta: o brutalismo (entendido como postura projetual) tem ainda lugar de relevância na arquitetura contemporânea?

Residência Cleômenes Dias Batista (São Paulo, 1964) - Rodrigo Lefèvre

Casa em Orlândia (1994) - Angelo Bucci e Alvaro Puntoni

         Embora alguns arquitetos ainda "copiem" conceitos, da mesma maneira que faziam ao sair da escola, outros evoluem tais conceitos, os mesclam a novas idéias ou idéias de outras experiências, surpreendendo, criando arquiteturas livres, expressão concreta (sem trocadilhos) de nosso tempo.



Reforma de Residência em Orlândia (2009) - SPBR
Vista frontal, com cobertura/floreira, cortes e vista de pátio interno, com sala de música cuja cobertura é uma piscina.

O brutalismo ainda tem relevância? Se depender de arquitetos como Angelo Bucci, tem. E como tem.



Referências
> KOURY, Ana Paula. Grupo Arquitetura Nova. São Paulo, Romano Guerra, 2003
> CAMARGO, Mônica Junqueira de. Joaquim Guedes. São Paulo, Cosac Naify, 2000
> BONDUKI, Nabil. Affonso Eduardo Reidy. São Paulo e Lisboa, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi e Editorial Blau, 2000
> Revista 2G, edição nº 54. João Vilanova Artigas. Barcelona, Gustavo Gilli, 2010
> Revista AU, edição nº 230. Reforma de Residência em Orlândia (p. 30)
> GRAÇA, Pablo Luhers. As Casas de Joaquim Guedes: 1957-1978. 2007. Dissertação (Mestrado) - PROPAR - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007
> MATERA, Sérgio. Carlos Millan: Um Estudo Sobre a Produção em Arquitetura. 2005. Dissertação (Mestrado) - FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005
> GADELHA, Julio Barretto. O Exercício da Criação: Arq. Joaquim Barretto. 2011. Dissertação (Mestrado) - FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011
> SEGNINI JUNIOR, Francisco. Racionalismo, Arquitetura e Capitalismo. 1986. Dissertação (Mestrado) - FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986

Todas as imagens foram retiradas das referências acima, com exceção das imagens, em ordem, a seguir:
> Pavilhão Adriana Varejão em Inhotim, projeto de Rodrigo Cerviño Lopez. Foto de Fernando Gobbo (Outubro de 2012);
> Maisons Jaoul. Foto retirada do Flickr do usuário seier+seier. Link para visualização de outras fotografias na legenda da imagem acima;
> Residência Maurício Marcondes em Ribeirão Preto. Foto de Fernando Gobbo (Setembro de 2011);
> Residência Anderson Gattaz em Ribeirão Preto. Foto de Larissa França (Março de 2013);
> Residência em City Boaçava: http://www.mmbb.com.br/projects/view/15


(1) Depoimento de Sérgio Ferro retirado da dissertação de Mestrado de Sérgio Matera sobre Carlos Millan, conforme consta acima nas referências. O excelente trabalho pode ser baixado na integra, clicando-se aqui.
(2) Embora outros arquitetos tivessem leais seguidores aqui, e tenham vindo ao Brasil até antes de Corbusier, como bem mostra o livro de Adriana Irigoyen "Wright e Artigas: duas viagens" (São Paulo, Ateliê Editorial, 2002).
(3) Relato de Francisco Segnini a um dos autores desse blog. Ainda de acordo com ele, o uso das abóbadas na Residência M. Marcondes se deve àquela ser a "última moda" da época.
(4) O texto pode ser lido na integra no livro "Sérgio Ferro: Arquitetura e Trabalho Livre" (São Paulo, Cosac Naify, 2006).

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