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Artigas em Curitiba: 2 Casas


         Arquitetura é espaço e tempo. Mesmo após séculos, tais conceitos são pouco compreendidos. Lidamos com o tempo como se esse fosse matemático, dividido em escalas e períodos, sem nos darmos conta ou atribuirmos a ele características ligadas à física ou à percepção mental (horas que demoram ou passam "voando"). O conceituamos matematicamente, por que, ao fazê-lo, sentimo-nos seguros. O mesmo se dá com o espaço, medido pela escala humana, distância sempre tomando como referência nós mesmos.
         Ambos, tempo e espaço, se unem quando falamos de distâncias inimagináveis (anos-luz). No entanto, todos sentem e percebem o espaço e o tempo, independente do que compreendem como tal. Ambos permeiam a tudo e a todos...a matéria. Sem a matéria, não teríamos a referência necessária do tempo e espaço nesse mundo.
         Nós arquitetos, ao definirmos um projeto, criamos a ilusão de que com isso também delimitamos práticas. O modernismo teria sido uma revolução espacial e temporal, pois mudaria nossa relação com o espaço construído, e era gênese de uma fundamentação histórica, um tempo que passou, que mudou. Quantas vezes, ainda na escola, não ouvimos que nossa arquitetura deve ser "atual", representar o nosso tempo?

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Casa Bettega (1953)
[Vilanova Artigas]


         Um elefante cor-de-rosa (vermelho). É assim que essa residência deve ter parecido aos cidadãos de Curitiba em sua conclusão na década de 1950. O autor, um dos mais ilustres arquitetos de São Paulo, era curitibano.
         Pouco citada no percurso arquitetônico da capital do estado do Paraná, esse projeto para a família Bettega marca a transição do arquiteto por caminhos mais "corbusianos" e menos "wrightianos"*.



         A entrada incomum da casa, pela lateral, já aponta a qualidade espacial que se encontra nos espaços internos. A organização da planta, apesar de nos parecer comum, remete a um dos grandes feitos da residência: a maneira com que áreas destinadas a "serviço" são dispostas. A cozinha e copa, bem como o pátio que abriga a lavanderia, se beneficiam da mesma luz que a sala de jantar e os dormitórios (emoldurados por grandes panos de vidros da fachada lateral).


Planta do sub-solo / Nível da rua

Planta do pavimento térreo

Planta do pavimento superior

         Os dormitórios merecem atenção especial: para um projeto que foi executado em 1953, é impressionante o fato do dormitório de empregados estar lado a lado com os demais quartos na planta do pavimento superior. E mais: um dos elementos arquitetônicos mais impressionantes da construção serve de acesso único ao cômodo, a escada helicoidal.



Corte Longitudinal

         O acesso interno ao pavimento superior é feito por meio de rampas (característica que o arquiteto empregaria em muitos outros projetos). Junto às rampas, a sala com pé-direito duplo convida a ficar perto da lareira. Foi nesse espaço, em 2006, que o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, ministrando uma oficina sobre maquetes, ficou sabendo que havia ganho o prêmio Pritsker daquele ano. A oficina gerou o livro "Maquetes de Papel" (Cosac Naify, 2007).

Paulo Mendes da Rocha na oficina de maquetes em 2006





         Hoje a casa se tornou centro cultural, com livraria e espaço para atividades. Com o nome do arquiteto, o espaço conserva a memória e o imaginário de uma Curitiba da metade do século XX. A riqueza espacial e surpresa da organização programática geraram um exemplo do que a arquitetura moderna se propunha a fazer. 60 anos depois, são ainda posturas projetuais louváveis e atuais.
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Casa Edgard Niclevicz (1978)
[Vilanova Artigas]


         Poucos sabem, mas Vilanova Artigas projetou outra residência em Curitiba, para sua sobrinha e seu esposo (que dá nome ao projeto). O contraste com o projeto anterior é claro: o Artigas desse projeto é o arquiteto das grandes empenas de concreto aparente, poucos pontos de apoio e caixas d´água destacadas.


         A maior diferença entre os dois projetos, no entanto, não está na materialidade. Enquanto a Casa Bettega é um prisma fechado por alvenaria vermelha e vidro, a Casa Niclevicz tem a planta em L construída por planos, com um pátio que se integra à casa pela piscina e uma série de pérgolas (imagem acima). Enquanto a fachada que se volta para a rua é cega (como em outras casas projetadas pelo arquiteto), um grande pano de vidro se volta para dentro do lote, nos interstícios da bonita solução estrutural, com pilares externos às vigas de concreto.

Empena cega da fachada frontal como vista da rua




         O depoimento em texto de Mariana Steiner Gusmão (e fotos de Gabriel Zem Schneider), do projetoBLOG (link nas referências abaixo), são um importante relato sobre esse projeto pouco divulgado. Informações preciosas nos são repassadas:
         Ao que parece, Artigas teve forte influência no projeto para sua sobrinha, rebatendo todas as críticas e posicionando as características que defendia. Sobre o grande pano de vidro por exemplo: "Márcia [a cliente e sobrinha do arquiteto] achou um problema limpar essa generosa área envidraçada. Seu tio retrucou dizendo que a sujeira fazia parte do projeto, pois sugeria os limites da arquitetura, não impostos por paredes opacas nem diluídos pela grande transparência, convencendo assim os clientes." Esses informações são importantes, não apenas como item de curiosidade, mas também para entender a posição de Vilanova Artigas na sua profissão naquele momento.


Planta do pavimento térreo

Planta do pavimento superior


         Era 1978. Artigas estava afastado de lecionar já há quase uma década. Podemos assistir a um retrato do arquiteto no vídeo feito na mesma época, em que fala do projeto para o edifício da FAUUSP (assista clicando aqui). O projeto é um manifesto daquilo que o arquiteto defendia...e daquilo que o arquiteto estava privado de viver. Suas casas eram então como o edificio da Faculdade de Arquitetura...com grandes empenas de concreto fora, e muita luz dentro. Como ele mesmo diz "por dentro uma maravilha, mas por fora uma fortaleza". As cores e a pedra, em contraste com a aparente rudeza do concreto, trazem personalidade e um ar de "casa" ao ambiente não institucional.



Assim como na Casa Bettega, rampas constituem o acesso vertical

         Hoje o edifício é o escritório e residência do arquiteto Marcos Bertoldi, que a redecorou e fez pequenas alterações (piso de borracha, portão na fachada, etc).






         O desejo de criar espaços para amparar a vida faz parte de nossa profissão. Ao fazê-lo, o arquiteto (independente se teve sucesso ou não) congela o tempo, cristalizado com os anseios de seus usuários. Por vezes, pontua-se os espaços urbanos com pequenos ensaios modernos como esses, capazes de propor novas maneiras de nos relacionarmos com a vida.


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         É importante lembrar que uma arquitetura só pode ser plenamente compreendida ao se caminhar por ela. É Apenas dessa maneira que ela expõe a nós seus atributos de maneira perfeita. É somente ao tomarmos como referência a distância de nosso olhar e corpo, rebatido no edifício, que podemos compreender um lugar. Uma fotografia, por mais que represente uma arquitetura de maneira fiél (afinal, trata-se da própria visão humana congelada), nos oferece um ângulo, uma vista insuficiente para sua compreensão sem outros artifícios. Tais leituras tem a pretensão de serem tais artifícios.

Referências:


> Casa Bettega

> Casa Edgard Niclevicz

*O fato é pouco comentado nas universidades. A obra de Artigas é geralmente introduzida a partir da Casa Olga Baeta e 2ª Residência Bittencourt. É importante frisar que Artigas já tinha vasta experiência com construção, com um currículo de muitos projetos. Antes de começar a se aventurar por caminhos mais ligados à arquitetura de Corbusier, o arquiteto curitibano construiu muitas residências com clara influência de Frank Lloyd Wright. Para saber mais sobre o assunto, recomendamos o livro "Wright e Artigas: 2 Viagens", de Adriana Irigoyen (Atelie Editorial, 2002).

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